Hanoch Levin ausculta a dor e Francisco Medeiros a põe em relevo.

Desde o primeiro minuto, sob blecaute e sons guturais, “Réquiem” firma um pacto visual e espiritual com o espectador, instado a testemunhar uma viagem feita de esgotamentos, compaixões poucas e gritos parados no ar. O silêncio intermitente permite até ouvir a respiração do outro, conquanto artifício de ressonância da intérprete para indicar enfermidade. Um silêncio delicado, taciturno até, mas inspirador diante da contemporaneidade tão ruidosa, e não só lá fora: durante a sessão, no Teatro Municipal, o celular de um dono desatento toca e presta seu desserviço ao teatro e ao coletivo do qual faz parte.

Mas seguimos a cadência introspectiva no ritmo das palavras, no movimento dos atores, no estado de inércia - também ela, inércia, uma resistência ao aceleramento/atropelamento de cucas. O compasso é lasso, todo ele colado ao verbo, aos diálogos e pontos narrativos do belo texto de Hanoch Levin, esse autor israelense até então inédito no Brasil, morto dez anos atrás. Isso, por si só, confere interesse à iniciativa da jovem Companhia do Lazzo que convida o diretor Francisco Medeiros a se debruçar, juntos, sobre a condição da finitude.

(Curiosamente, “lazzo” é expressão italiana oriunda da Commedia Dell’Arte que, em resumo, evidencia a ação física no jogo do ator, uma disposição para o improviso e a brincadeira que, na montagem em questão, passa ao largo porque deslocada dos temas).

O espectro de Anton Tchékhov ronda o palco. Nessa que é uma das suas últimas peças, para a qual chegou a fazer indicações de direção no leito de hospital, Levin evoca o escritor russo da virada do século XIX para o XX. Congrega três contos dele como inspiração para descortinar a vida de seres que parecem contemplar a vida de soslaio, sem objetivo. É chocante quando ouvimos o carpinteiro dar-se conta de que se passaram 52 anos e ele não prestou atenção aos mínimos desejos de sua mulher que agora acorre em busca de médico. Nem ela meditou sobre o tédio a dois, aceitando-o tão somente. A vida nem tudo remedeia.

Esse fazedor de caixão – ironia absoluta – é quem ancora o enredo. Depois de enterrar a mulher, será ele mesmo a lidar com a proximidade da morte ou revestir-se de anjo para uma moça que traz no colo um filho por um fio: um bebê de seis meses atingido em seu rosto por um balde de água fervendo. Essa imagem lancinante, enunciada, resume o estado de horrores a que Levin parece referir-se em sua dramaturgia de urgência. Ela às vezes é cutânea. Ao que nem sempre a corporeidade dos atores acompanha.

Os sete - alguns com idade décadas atrás do personagem, aspecto positivo na criação - compõem com sutileza esse primeiro ponto de vista, o da insensibilidade que impulsiona as pessoas a deixar-se ir pela vida e não tomar as rédeas, ruminando resignações, afasias. Mas há momentos em que os personagens, súbito, despertam desse sono profundo, como nos rompantes oníricos (e paradoxais), encontros de um quê lisérgico com seres fantásticos. Seria o caso de explicitar essa tensão, contrastar as pulsações interiores por meio dessas figuras. No entanto, corpo e voz pouco variam da conhecida toada de realidades cênicas já introduzidas, quando esses lugares de alteridade são dispostos com incisão pela dramaturgia, mas isso não arvorece nem com os querubins da floresta.

Na cenografia, o signo mais presente é a mala. São muitas. O objeto tem a ver com o ser viajante, o passante de um ponto a outro, às vezes sem jamais carimbar a volta. A carruagem é sugerida com um alinhamento geométrico de pessoas e malas que a conformam como tal. Mas essa boa idéia esgota-se quando repetida três, quatro vezes. Inclusive outro estranhamento de extrema delicadeza, a miniatura de um cavalo à frente do veículo, remetendo à tração animal. Quem sabe, duas carruagens em ângulos, tamanhos e desenhos distintos dariam conta do recado.

Ainda assim, qual pintor com a paleta em punho, Francisco Medeiros imprime as devidas cores à paisagem humana traçada por Hanoch Levin. A poesia etérea é imanente, tributária da linhagem tchekhoviana. As histórias tocam. Auscultá-las é conhecer certas dores do mundo. Como a solidão do cocheiro à qual ninguém dá ouvidos. Desfilam homens e mulheres subtraídos ora pelo desejo ora pela sua falta. “Quando é que a gente aposenta os desejos?”, ouve-se a certa altura. O espectador pisa o hospital do outro e testemunha sem compressas frias.

VALMIR SANTOS.